Enquanto diferenças culturais
podem estar situadas entre algumas das principais motivações para o surgimento
ou a potencialização de conflitos, uma outra perspectiva - tradicionalmente
colocada em segundo plano - torna-se válida ao perceber que a efetividade de processos
de peacebuilding centrados em medidas
puramente políticas e/ou militares nem sempre é garantida.
Hoje, todos os conflitos são e
devem ser uma preocupação de todos, uma vez que no nosso mundo globalizado um
conflito em qualquer lugar pode gerar conflitos em todos os lugares. Em tempos
de comunicação sem precedentes, oportunidades, interconectividade e migração,
os riscos para a paz também se encontram nas desigualdades, no fanatismo e na
marginalização dos grupos vulneráveis, bem como na rejeição e na ignorância de
outras culturas, juntamente com as suas tradições, crenças e histórias.
Neste contexto, a cultura surge como um fator essencial tanto para o desenvolvimento sustentável quanto para uma paz duradoura. Na verdade, nem o progresso equitativo nem a coesão social é verdadeiramente possível se a cultura é deixada de lado. Pelo contrário, o caminho para o desenvolvimento inclusivo social e econômico, a sustentabilidade ambiental, a paz e a segurança está firmemente enraizado na cultura, entendida nos seus sentidos espirituais, materiais, intelectuais e emocionais, e englobando diversos sistemas de valores, tradições e crenças. A cultura influencia diretamente a relação das pessoas com o desenvolvimento sustentável, os conflitos e reconciliação de diferentes maneiras. Como um repositório de conhecimento, significado e valores que permeiam todos os aspectos da nossa vida, a cultura também define a forma como os seres humanos vivem e interagem uns com os outros e seu meio ambiente.
A mudança da natureza dos
conflitos atuais, que ocorrem menos entre Estados e mais dentro dos mesmos, e
que são alimentados não por exércitos organizados, mas por grupos paramilitares
e com civis cada vez mais presentes no fogo cruzado, exigem novas reflexões sobre
a resolução de conflitos e métodos da reconciliação. Isto inclui a percepção da
cultura como fator chave neste processo.
Embora perceba-se o crescente reconhecimento
da relevância de aspectos culturais e sociais para a resolução de conflitos, a
abordagem mais trabalhada destes processos permanece limitada a esforços
técnicos e logísticos, fazendo com que aspectos subjetivos como as artes e
expressões culturais sejam uma reflexão tardia.
A harmonia dentro dos Estados
necessita de uma forte identidade coletiva em torno da qual os seus membros
podem unir-se - de preferência, uma identidade que incorpore as diferenças
locais. Neste sentido, os processos de construção da paz não devem ser
interpretados como modelos puramente técnicos e sequenciais. O problema com uma
abordagem excessivamente técnica nesta temática é que a maneira como a identidade
coletiva é formada não pode ser quantificada: ela é intrinsecamente social e
cultural. Processos de peacebuilding ainda não investem o suficiente em
instituições sociais e culturais, sendo estas importantes para a preservação de
qualquer identidade coletiva – em especial, aquelas que sofrem em momentos
de conflitos.
A unidade nacional, por exemplo,
é dificilmente promovida, especialmente em situações de conflito, sem o
intermédio e a facilitação de instituições que considerem a cultura local em
suas atuações. Países como o Sudão do Sul, Afeganistão, Somália e República Democrática
do Congo não são nações totalmente coesas (socialmente e culturalmente falando)
e uma abordagem mais ampla para a criação de instituições culturais poderia
apoiar, e não dividir suas unidades culturais, promovendo o respeito mútuo e a
tolerância entre grupos tradicionalmente rivais, por exemplo. Sem a ampla
inclusão do viés cultural nas instituições criadas para finalidades de
construção de paz, para além de interesses políticos, tais instituições podem acabar
por contribuir para a manutenção da segregação de certos grupos, evidenciando
conflitos étnicos e culturais.
Há uma necessidade urgente de
cooperação e multilateralismo, e da promoção de políticas comuns que integrem a
cultura nas estratégias e programas de construção da paz. Ações importantes neste
sentido incluem a prevenção de conflitos através da educação para a paz, o
diálogo intercultural, a promoção e o apoio da diversidade cultural e a
promoção da cooperação internacional em ciência e tecnologia. Estas são políticas
inclusivas que evidenciam a importância dos direitos humanos, da liberdade de
expressão, da equidade e da igualdade, da dignidade e do diálogo.
Nesse sentido, organizações de
consolidação da paz locais podem ser um elo importante nesta cadeia entre o
desenvolvimento de infra-estrutura de uma nação e seu desenvolvimento cultural.
Artes e projetos de desenvolvimento cultural estão localizados nas bases mais
profundas da consolidação da paz, a partir desta perspectiva mais abrangente.
Podem ser apontadas três
dimensões acerca da importância da cultura para os processos de peacebuilding:
1. Prevenção dos conflitos
Dado que o intercâmbio
cultural pode ser definido como atividades que melhorem a compreensão mútua e
promovam a valorização das identidades mútuas, podemos dizer que é um processo
de assimilação, absorção e integração. É essencial para a harmonia da
convivência humana a consciência da importância do reconhecimento e da
tolerância das diferenças, no interesse da construção de um sentido de unidade
global. Em termos de prevenção de conflitos, esta compreensão mútua é de grande
importância e o intercâmbio de expressões culturais tem um grande potencial
para a sua construção.
2. Prevenção da intensificação
de conflitos
Em regiões afetadas por
conflitos de longa duração, o intercâmbio cultural pode ajudar a evitar que os
conflitos entrem em uma escalada de violência, permitindo que as comunidades
locais reconsiderem suas próprias identidades culturais e as dos seus oponentes,
por sua vez, distorcidas pela guerra. Ódios de ambos os lados distorcem e
exageram negativamente as identidades de ambas as partes, alimentando a
escalada de um conflito existente. O intercâmbio cultural pode contribui para
corrigir tais distorções.
Além disso, quando um conflito
se prolonga, as comunidades locais tornam-se isoladas do mundo exterior. O
conflito em si, em vez de o seu sofrimento, é o que é mais evidenciado,
servindo como a única conexão das áreas de conflitos com o resto do mundo. Os
povos destas localidades - incluindo suas vidas cotidianas, mentalidades e
emoções - acabam por serem obscurecidos. Uma das metas do intercâmbio cultural é proteger as
pessoas contra o isolamento psicológico e cultural, isto é, para fornecer
ligações entre estes cidadãos na área de conflito e as sociedades externas.
3. Reconstrução da paz no contexto
pós-conflito
Quando um conflito militar ou
político está perto do fim, é preciso considerar o potencial do intercâmbio
cultural em ajudar a curar feridas psicológicas. É extremamente traumática para
as vítimas de conflitos a experiência de perder parentes ou de ser separado de
outros membros da mesma aldeia ou grupo, por exemplo. Para ajudar essas pessoas
a curar ou atenuar seus traumas psicológicos, atividades de intercâmbio
cultural que ofereçam as partes do conflito a oportunidade de expressar os seus
sentimentos podem ser de grande ajuda na redefinição de suas identidades, na
reconciliação e na prevenção de conflitos futuros.
Além disso, e ainda durante os
tempos de conflito, a proteção do patrimônio cultural em todas as suas formas é
primordial. Esta proteção vai além dos monumentos e edificações, pois carregam
valores do passado que são importantes para as sociedades atuais e futuras. Três
tratados internacionais, e juridicamente vinculativos, reforçam a ideia de
patrimônio como um reservatório de identidade e significado: a Convenção de
Haia de 1954 para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado; a
Convenção da UNESCO de 1970 sobre os Meios de Proibir e Prevenir a Importação,
Exportação e Transferência de Propriedade de Bens Culturais; e a Convenção de
1972 do Patrimônio Mundial. Estas convenções também destacam o fato de que os
ataques a herança cultural traduzem-se diretamente em ataques à identidade
compartilhada.
O ataque a patrimônios
culturais não é feito por acaso: destruindo pontes, templos, mesquitas, igrejas, santuários, manuscritos e bibliotecas, os agressores visam quebrar ambas as
conexões com o passado e as projeções para o futuro das comunidades atacadas.
Esta é uma das razões pelas quais a UNESCO tem apelado para a perspectiva da
destruição de patrimônios culturais como um problema de segurança internacional.
Devido a sua importância, o patrimônio cultural desempenha um papel fundamental
na resolução de conflitos. Em situações pós-conflito tais patrimônios, muitas
vezes, tornam-se um símbolo forte e ferramenta para a reconstrução de
comunidades, ajudando-as ativamente para quebrar o ciclo de violência.
Assim, um processo de construção da paz neste contexto deve incluir atividades
para restabelecer um símbolo da identidade cultural étnica, seja ele tangível
(por exemplo: um monumento histórico) ou intangíveis (por exemplo: peças teatrais).
Particularmente quando integradas nas estratégias
educativas na fase inicial de processos de peacebuilding, as iniciativas culturais que reconheçam a
diversidade dentro de uma abordagem baseada nos direitos humanos podem
desempenhar um papel particularmente importante na construção de confiança e
tolerância entre as comunidades multiculturais e no fornecimento de um espaço
comum de diálogo. Incluindo também a capacidade dos indivíduos de participar
livremente da vida cultural e ter acesso aos bens culturais, o reconhecimento
da importância da cultura contribui consideravelmente para a construção de uma
cultura de paz e, portanto, para a promoção da segurança humana. Incentivar atividades
culturais e a criatividade em áreas de conflito ou áreas afetadas por desastres pode permitir que as comunidades se reconectem com suas identidades e
recuperem um sentido de normalidade, desfrutando das artes e começando a curar as
cicatrizes dos conflitos. Programas culturais também podem ajudar a fomentar a
valorização da diversidade cultural e valorização do "elemento
universal" em todas as culturas, ajudando a humanizar o outro
e abrindo o caminho para a compreensão mútua.
Para maiores
considerações, indica-se a leitura do relatório final (em inglês) de uma das
sessões do Salzurbug Global Seminar 2014, de tema “Conflict
Transformation through Culture: Peace-Building and the Arts”. Especialistas, artistas e representantes
governamentais de 28 países discutiram as implicações do uso prático e da
importância de expressões culturais nos processos de peacebuilding, oferecendo muitas
considerações válidas acerca do tema. O relatório está disponível aqui.
REFERÊNCIAS:
GRAINT, Jamie.
Cultural peacebuilding. Insight on Conflit, 2012. Disponível em http://www.insightonconflict.org/2012/02/cultural-peacebuilding/.
Acesso em 22 de outubro de 2015.
OGOURA, Kazuo. Peacebuilding
and Culture. The Japan Foundation, 2009. Disponível em https://www.jpf.go.jp/j/publish/intel/cul_initiative/pdf/ogoura_e.pdf.
Acesso em 27 de outubro de 2015.
UNESCO. Peace
and reconciliation: how culture makes the difference. Culture: Key to
Sustainable Development Inernational Congress /High-level
Discussion 2, 2013. Disponível em http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/HQ/CLT/images/PeaceReconciliationENG.pdf.
Acesso em 27 de outubro de 2015.
:) <3
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