domingo, 1 de novembro de 2015

Cultura e peacebuilding: um breve panaroma

Enquanto diferenças culturais podem estar situadas entre algumas das principais motivações para o surgimento ou a potencialização de conflitos, uma outra perspectiva - tradicionalmente colocada em segundo plano - torna-se válida ao perceber que a efetividade de processos de peacebuilding centrados em medidas puramente políticas e/ou militares nem sempre é garantida.

Hoje, todos os conflitos são e devem ser uma preocupação de todos, uma vez que no nosso mundo globalizado um conflito em qualquer lugar pode gerar conflitos em todos os lugares. Em tempos de comunicação sem precedentes, oportunidades, interconectividade e migração, os riscos para a paz também se encontram nas desigualdades, no fanatismo e na marginalização dos grupos vulneráveis, bem como na rejeição e na ignorância de outras culturas, juntamente com as suas tradições, crenças e histórias.


Neste contexto, a cultura surge como um fator essencial tanto para o desenvolvimento sustentável quanto para uma paz duradoura. Na verdade, nem o progresso equitativo nem a coesão social é verdadeiramente possível se a cultura é deixada de lado. Pelo contrário, o caminho para o desenvolvimento inclusivo social e econômico, a sustentabilidade ambiental, a paz e a segurança está firmemente enraizado na cultura, entendida nos seus sentidos espirituais, materiais, intelectuais e emocionais, e englobando diversos sistemas de valores, tradições e crenças. A cultura influencia diretamente a relação das pessoas com o desenvolvimento sustentável, os conflitos e reconciliação de diferentes maneiras. Como um repositório de conhecimento, significado e valores que permeiam todos os aspectos da nossa vida, a cultura também define a forma como os seres humanos vivem e interagem uns com os outros e seu meio ambiente.


A mudança da natureza dos conflitos atuais, que ocorrem menos entre Estados e mais dentro dos mesmos, e que são alimentados não por exércitos organizados, mas por grupos paramilitares e com civis cada vez mais presentes no fogo cruzado, exigem novas reflexões sobre a resolução de conflitos e métodos da reconciliação. Isto inclui a percepção da cultura como fator chave neste processo. 

Embora perceba-se o crescente reconhecimento da relevância de aspectos culturais e sociais para a resolução de conflitos, a abordagem mais trabalhada destes processos permanece limitada a esforços técnicos e logísticos, fazendo com que aspectos subjetivos como as artes e expressões culturais sejam uma reflexão tardia.

A harmonia dentro dos Estados necessita de uma forte identidade coletiva em torno da qual os seus membros podem unir-se - de preferência, uma identidade que incorpore as diferenças locais. Neste sentido, os processos de construção da paz não devem ser interpretados como modelos puramente técnicos e sequenciais. O problema com uma abordagem excessivamente técnica nesta temática é que a maneira como a identidade coletiva é formada não pode ser quantificada: ela é intrinsecamente social e cultural. Processos de peacebuilding ainda não investem o suficiente em instituições sociais e culturais, sendo estas importantes para a preservação de qualquer identidade coletiva – em especial, aquelas que sofrem em momentos de conflitos. 

A unidade nacional, por exemplo, é dificilmente promovida, especialmente em situações de conflito, sem o intermédio e a facilitação de instituições que considerem a cultura local em suas atuações. Países como o Sudão do Sul, Afeganistão, Somália e República Democrática do Congo não são nações totalmente coesas (socialmente e culturalmente falando) e uma abordagem mais ampla para a criação de instituições culturais poderia apoiar, e não dividir suas unidades culturais, promovendo o respeito mútuo e a tolerância entre grupos tradicionalmente rivais, por exemplo. Sem a ampla inclusão do viés cultural nas instituições criadas para finalidades de construção de paz, para além de interesses políticos, tais instituições podem acabar por contribuir para a manutenção da segregação de certos grupos, evidenciando conflitos étnicos e culturais. 

Há uma necessidade urgente de cooperação e multilateralismo, e da promoção de políticas comuns que integrem a cultura nas estratégias e programas de construção da paz. Ações importantes neste sentido incluem a prevenção de conflitos através da educação para a paz, o diálogo intercultural, a promoção e o apoio da diversidade cultural e a promoção da cooperação internacional em ciência e tecnologia. Estas são políticas inclusivas que evidenciam a importância dos direitos humanos, da liberdade de expressão, da equidade e da igualdade, da dignidade e do diálogo. 

Nesse sentido, organizações de consolidação da paz locais podem ser um elo importante nesta cadeia entre o desenvolvimento de infra-estrutura de uma nação e seu desenvolvimento cultural. Artes e projetos de desenvolvimento cultural estão localizados nas bases mais profundas da consolidação da paz, a partir desta perspectiva mais abrangente. 

Podem ser apontadas três dimensões acerca da importância da cultura para os processos de peacebuilding:

1. Prevenção dos conflitos
Dado que o intercâmbio cultural pode ser definido como atividades que melhorem a compreensão mútua e promovam a valorização das identidades mútuas, podemos dizer que é um processo de assimilação, absorção e integração. É essencial para a harmonia da convivência humana a consciência da importância do reconhecimento e da tolerância das diferenças, no interesse da construção de um sentido de unidade global. Em termos de prevenção de conflitos, esta compreensão mútua é de grande importância e o intercâmbio de expressões culturais tem um grande potencial para a sua construção. 

2. Prevenção da intensificação de conflitos
Em regiões afetadas por conflitos de longa duração, o intercâmbio cultural pode ajudar a evitar que os conflitos entrem em uma escalada de violência, permitindo que as comunidades locais reconsiderem suas próprias identidades culturais e as dos seus oponentes, por sua vez, distorcidas pela guerra. Ódios de ambos os lados distorcem e exageram negativamente as identidades de ambas as partes, alimentando a escalada de um conflito existente. O intercâmbio cultural pode contribui para corrigir tais distorções.
Além disso, quando um conflito se prolonga, as comunidades locais tornam-se isoladas do mundo exterior. O conflito em si, em vez de o seu sofrimento, é o que é mais evidenciado, servindo como a única conexão das áreas de conflitos com o resto do mundo. Os povos destas localidades - incluindo suas vidas cotidianas, mentalidades e emoções - acabam por serem obscurecidos. Uma das metas do intercâmbio cultural é proteger as pessoas contra o isolamento psicológico e cultural, isto é, para fornecer ligações entre estes cidadãos na área de conflito e as sociedades externas. 

3. Reconstrução da paz no contexto pós-conflito
Quando um conflito militar ou político está perto do fim, é preciso considerar o potencial do intercâmbio cultural em ajudar a curar feridas psicológicas. É extremamente traumática para as vítimas de conflitos a experiência de perder parentes ou de ser separado de outros membros da mesma aldeia ou grupo, por exemplo. Para ajudar essas pessoas a curar ou atenuar seus traumas psicológicos, atividades de intercâmbio cultural que ofereçam as partes do conflito a oportunidade de expressar os seus sentimentos podem ser de grande ajuda na redefinição de suas identidades, na reconciliação e na prevenção de conflitos futuros.

Além disso, e ainda durante os tempos de conflito, a proteção do patrimônio cultural em todas as suas formas é primordial. Esta proteção vai além dos monumentos e edificações, pois carregam valores do passado que são importantes para as sociedades atuais e futuras. Três tratados internacionais, e juridicamente vinculativos, reforçam a ideia de patrimônio como um reservatório de identidade e significado: a Convenção de Haia de 1954 para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado; a Convenção da UNESCO de 1970 sobre os Meios de Proibir e Prevenir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedade de Bens Culturais; e a Convenção de 1972 do Patrimônio Mundial. Estas convenções também destacam o fato de que os ataques a herança cultural traduzem-se diretamente em ataques à identidade compartilhada.

O ataque a patrimônios culturais não é feito por acaso: destruindo pontes, templos, mesquitas, igrejas, santuários, manuscritos e bibliotecas, os agressores visam quebrar ambas as conexões com o passado e as projeções para o futuro das comunidades atacadas. Esta é uma das razões pelas quais a UNESCO tem apelado para a perspectiva da destruição de patrimônios culturais como um problema de segurança internacional. Devido a sua importância, o patrimônio cultural desempenha um papel fundamental na resolução de conflitos. Em situações pós-conflito tais patrimônios, muitas vezes, tornam-se um símbolo forte e ferramenta para a reconstrução de comunidades, ajudando-as ativamente para quebrar o ciclo de violência. 

Assim, um processo de construção da paz neste contexto deve incluir atividades para restabelecer um símbolo da identidade cultural étnica, seja ele tangível (por exemplo: um monumento histórico) ou intangíveis (por exemplo: peças teatrais).

Particularmente quando integradas nas estratégias educativas na fase inicial de processos de peacebuilding, as iniciativas culturais que reconheçam a diversidade dentro de uma abordagem baseada nos direitos humanos podem desempenhar um papel particularmente importante na construção de confiança e tolerância entre as comunidades multiculturais e no fornecimento de um espaço comum de diálogo. Incluindo também a capacidade dos indivíduos de participar livremente da vida cultural e ter acesso aos bens culturais, o reconhecimento da importância da cultura contribui consideravelmente para a construção de uma cultura de paz e, portanto, para a promoção da segurança humana. Incentivar atividades culturais e a criatividade em áreas de conflito ou áreas afetadas por desastres pode permitir que as comunidades se reconectem com suas identidades e recuperem um sentido de normalidade, desfrutando das artes e começando a curar as cicatrizes dos conflitos. Programas culturais também podem ajudar a fomentar a valorização da diversidade cultural e valorização do "elemento universal" em todas as culturas, ajudando a humanizar o outro e abrindo o caminho para a compreensão mútua. 




Para maiores considerações, indica-se a leitura do relatório final (em inglês) de uma das sessões do Salzurbug Global Seminar 2014, de tema “Conflict Transformation through Culture: Peace-Building and the Arts”. Especialistas, artistas e representantes governamentais de 28 países discutiram as implicações do uso prático e da importância de expressões culturais nos processos de peacebuilding, oferecendo muitas considerações válidas acerca do tema. O relatório está disponível aqui.

REFERÊNCIAS:

GRAINT, Jamie. Cultural peacebuilding. Insight on Conflit, 2012. Disponível em http://www.insightonconflict.org/2012/02/cultural-peacebuilding/. Acesso em 22 de outubro de 2015.

OGOURA, Kazuo. Peacebuilding and Culture. The Japan Foundation, 2009. Disponível em https://www.jpf.go.jp/j/publish/intel/cul_initiative/pdf/ogoura_e.pdf. Acesso em 27 de outubro de 2015.

UNESCO. Peace and reconciliation: how culture makes the difference. Culture: Key to Sustainable Development Inernational Congress /High-level Discussion 2, 2013. Disponível em http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/HQ/CLT/images/PeaceReconciliationENG.pdf. Acesso em 27 de outubro de 2015.

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